14 de dezembro de 2013

Penetrantes da cidade-museu


Vista da instalação "Penetrável Genet",
em cartaz no Cemitério do Araçá até amanhã, dia 15/12


"Quasi-cinema" de Hélio OIticica projetado sobre monolitos
no instalação "Penetrável Genet", de Anna Ferrari e Celso Sim

Ainda é possível visitar um último e incrível suspiro da programação da X Bienal de Arquitetura de SP_ a mais competente em conteúdo e forma que já tivemos. Se antes as Bienais se concentravam em um espaço expositivo, essa deu um salto ao se espalhar em rede por inúmeros pontos de São Paulo, conectados pelo metrô, para tratar do tema que não quer calar e nos afeta diariamente: “Cidades: Modos de Fazer, Modos de Usar”, sob curadoria do arquiteto e crítico Guilherme Wisnik, com curadoria adjunta de Ana Luiza Nobre e Lígia Nobre.

O último suspiro a que me refiro é a instalação de arte urbana “Penetrável Genet”, que trata de temas como a vida, a morte, o prazer, a dor e a memória, com uma potência impessionante. Propõe ao visitante um passeio, guiado, pelo quase-não-lugar que é a necrópole_ no caso, o Cemitério do Araçá_ ao som de um poema de Hélio Oiticica, musicado, até a chegada ao Ossário Geral_ onde estão os restos mortais de vítimas da ditadura, jogadas, na época, numa vala-comum do cemitério Perus. Ali, os autores da obra_ a arquiteta Anna Ferrari e o artista Celso Sim_ introduziram monolitos de mármore onde se projetam imagens de um “quasi-cinema” de Hélio Oiticica e também da exumação dos corpos na época da transferência dos mesmos. O penetrante-visitante, na penetrável caixa de ossos–memória, está, portanto, imerso em uma experiência sensorial acionada pela música, pelo lugar insólito, pelas imagens, pelo subtexto histórico _  experiência que leva, a depender de cada um, a um feixe de percepções e elaborações que florescem dali em diante. E a contundência do trabalho, agora em seu cerne político, foi ainda mais potencializada por ter sido vandalizada na véspera de sua abertura. Os artistas, sabiamente, incorporaram o ataque ao trabalho e o que se vê é a instalação violada _ parte ruína assinada pela intolerância e violência. Violência de ontem e de hoje, revista e repetida ali.
Conceitualmente, Penetrável Genet  articula duas ideias. A que sugere o escritor francês Jean Genet em um texto, ao incentivar intervenções artísticas em cemitérios, e a do ideal Neoconcreto  _ mais fortemente em Hélio Oiticica e  Lygia Clark_ de colocar o visitante enquanto vetor e protagonista do acontecimento da obra de arte. Em outras palavras, o corpo presente na obra de arte_ que pode ser um espaço, uma indumentária, etc_ é quem dá vida a ela. A essas duas idéias se associa o tema político de denúncia sobre os horrores da ditadura_ assunto extremamente caro a Anna, uma das autoras. Neta do artista argentino León Ferrari (tido como dos mais provocadores e importantes do mundo ao tratar dos temas intolerância, guerras e religião católica), teve sua família perseguida pela ditadura argentina e perdeu um tio assassinado por ela (filho de León). E numa coincidência absurda, presenciou um ataque a uma exposição de seu avô durante sua abertura, em 2004 (o episódio envolveu ainda o à época cardeal Bergoglio_ hoje Papa Francisco_ que quis censurar a mostra, e é relatado no livro " O Caso Ferrari"). Mas se o fascismo odeia a arte e deixa sua herança, a arte deixa seu legado e sempre encontra uma maneira virtuosa e inteligente de se impor e denunciar. A grandeza de Penetrável Genet nos remete também a isso.

Nos disse Hélio Oiticica que “O Museu é o Mundo"; nos mostra isso Penetrável Genet na escala em que atua; nos propôs isso essa Bienal espalhada pela cidade, para que se fosse de encontro, com intensidade, ao organismo vivo da megalópole, com corpo presente, poros e olhos abertos para a caótica realidade construída _ consultando absurdos, relembrando outros, aprendendo com o passado e vendo o que está superado. Para então, a partir dessas escavações e visadas, podermos nos mover melhor no sentido quase inexplorado, dada nossa recente cultura urbana, de intervir e propor novos modos de fazer e de usar a cidade. Que é mundo, museu, palco pra vida_ plena de tragédias, mas também de possibilidades.
Penetrável Genet: em cartaz desde 05/11, vai só até amanhã 15/12, de 12h às 16h  .  Cemitério do Araçá ( Av. Dr Arnaldo, 666, Cerqueira César, Sp)  .  Metrô Clínicas
Inscrições gratuitas por email: enviar nome, data e horário para penetravel.genet@gmail.com até às 18h um dia antes da sessão escolhida e chegar 10 minutos antes. Vá de sapato confortável.


Invenção da Cor, Penetrável Magic Square #5, De Luxe, 1977_ obra de Hélio Oiticica no Museu Inhotim



Um parangolé de Hélio Oiticica, vivo através de seu visitante

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